O direito de receber
A propósito da entrevista dada pelo Presidente do Instituto Português do Sangue, na sequência das notícias veiculadas a 17 de Julho pelos meios de comunicação, acendeu-se de novo a polémica à volta dos critérios de exclusão de dadores de sangue.
A transformação deste assunto em problema político, em bandeira de defesa dos direitos dos homossexuais, acusando o Instituto Português de Sangue e o seu responsável de homofobia, exigindo a sua demissão, é uma forma totalmente desfocada de olhar para a realidade.
Não se trata de discriminação dos comportamentos ou das escolhas de orientação sexual, trata-se de usar os meios aos dispor da comunidade científica para a redução máxima do risco de um acto médico, que tem sempre riscos, por mínimos que sejam.
A existência de critérios de exclusão é um meio de assegurar a quem necessita de transfusões sanguíneas o menor risco possível de contaminação por agentes infecciosos: HIV, HCV, HBC, HHV-8, HHV-2, priões, etc. Existem grupos nacionais e internacionais que analisam os vários contributos científicos em cada área, as consequências para a população, éticas, sociais e de saúde pública, e definem orientações (guidelines) para cada caso.
Podem consultar-se as guidelines da Cruz Vermelha Americana que estipulam as várias circunstâncias em que as pessoas não devem doar sangue. Por exemplo qualquer pessoa que tenha recebido um transplante de dura-mater (membrana que cobre o cérebro) ou hormona de crescimento não pode dar sangue; os familiares em primeiro grau de uma pessoa com a doença de Creutzfeld-Jacob não podem dar sangue; em relação ao risco de HIV/SIDA diz o seguinte:
You are at risk for getting infected if you:
- have ever used needles to take drugs, steroids, or anything not prescribed by your doctor
Pode também consultar-se o Annual Meeting de 2008 da American Medical Association (AMA) - REPORTS OF THE COUNCIL ON SCIENCE AND PUBLIC HEALTH – que (páginas 421 e 428) faz uma revisão das guidelines actuais:
Há ainda uma directiva da União Europeia (EC Directive 2004/33) que, no anexo III, define quem está permanentemente excluído de doar sangue:
Em Março de 2008 o Conselho Europeu produziu a Resolution on Donor Responsibility and Limitations of the Right to Donate Blood or its Components - Resolution CM/Res (2008)5 - que conclui que:
Nesse mesmo documento existe uma tabela com os Estados membros que seguem o critério de exclusão de homens que têm sexo com homens (MSM) e os que não seguem, quais os motivos e quais as orientações seguidas. De um total de 27 países, 9 não seguem as guidelines (este documento é de Março de 2009).
Dar sangue não é um direito. O que é um DIREITO e DE TODOS é o de RECEBER SANGUE com a menor probabilidade possível de conter riscos infecciosos. Cabe aos organismos de saúde pública a responsabilidade de garantirem, tanto quanto os conhecimentos científicos o permitam, que quem o recebe está salvaguardado de doenças futuras, directamente relacionadas com a transfusão. Para isto existem critérios científicos que não se devem misturar com activismo político.
Nota: também aqui.
Adenda (1) (01/08/2009) - os dados e estatísticas nacionais em relação à infecção HIV/SIDA estão no site da Coordenação Nacional para a infecção HIV/SIDA, no separador documentação e informação, Infecção VIH/sida (CVEDT/INSA) - Dados VIH/sida Doc. 140 - A situação em Portugal a 31 de Dezembro de 2008.
Adenda (2) (01/08/2009) - usando os dados do INSA, Infecção VIH/SIDA (doc. 140), actualizados a 31/12/2008, os cálculos de incidência (em 2008) e de prevalência (de 1983 a 2008), considerando a existência de 7,5% de população homossexual (feminina e masculina) e/ou bissexual (média das referências nas sociedades ocidentais – 2 a 13%) os valores encontrados são:
- Incidência (2008) - 6 por 100.000 habitantes na população homo/bissexual e 3 por 100.000 habitantes na população heterossexual
- Prevalência (1983/2008) – 256 por 100.000 habitantes na população homo/bissexual e 130 por 100.000 habitantes na população heterossexual
Ou seja, existe o dobro da prevalência e da incidência da infecção VIH/SIDA na população homossexual/bissexual quando se compara com a população heterossexual.
Mas se considerarmos as percentagens estimadas da população homo/bissexual (2,2%) num trabalho do ICS, coordenado pelos investigadores Manuel Villaverde Cabral e Pedro Moura Ferreira, do qual fizeram parte Sofia Aboim, Duarte Vilar, Alexandre Lourenço e Raquel Lucas (já citado anteriormente), apresentado em Maio do ano passado no auditório do ICS, com debate integrado por várias personalidades, entre as quais Miguel Vale de Almeida, a prevalência seria 874 por 100.000 e a incidência 21 por 100.000 habitantes, 7 vezes superiores aos da população heterossexual.
E estamos apenas a falar da infecção VIH/SIDA. Faltam as hepatites (B, C, D, …), os Herpes Vírus (HHV-8 e HHV-2), etc.
Adenda (3) (02/08/2009) - Agradeço à Ana Matos Pires a chamada de atenção em relação à incorrecção da adenda 2, já corrigida, que dava como co-autor do trabalho do ICS Miguel Vale de Almeida. Aos autores e ao Miguel Vale de Almeida peço desculpa pelo erro.