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SIMplex

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17
Set09

Garantir um futuro para todos - Manifesto sobre política de saúde

Porfírio Silva

Foi hoje divulgado um "Manifesto sobre política de saúde a propósito das eleições legislativas 2009", intitulado Garantir um futuro para todos.São seus subscritores: Adalberto Campos Fernandes, Álvaro Beleza, Bernardo Vilas-Boas, Constantino Sakellarides, Henrique de Barros, Isabel Monteiro Grillo, Vítor Ramos.

Sendo um documento que coloca questões da maior importância, que não podem deixar de estar sob discussão numa campanha eleitoral séria, damos-lhe  aqui divulgação. Para já assim "a seco", para que possa alimentar um debate de interesse político que seja travado com elevação cívica.

 

Garantir um futuro para todos

Manifesto sobre política de saúde a propósito das eleições legislativas 2009

 

1. Transparência na política de saúde
A Saúde é um bem precioso, a realização do nosso potencial de bem-estar é uma expectativa legítima, e o acesso de todos a serviços de saúde de qualidade é um desígnio civilizacional de primeira grandeza. No entanto, de tantas vezes repetidas, estas podem parecer palavras vãs, se as políticas de saúde que se esboçam nos programas eleitorais não ajudarem os cidadãos a entenderem os caminhos que vão das ideias às realizações concretas.

 

2.Porque não assumir transparentemente que os projectos programáticos à disposição dos eleitores contêm de facto duas opções alternativas para a Saúde em Portugal?
O que está verdadeiramente em causa é (1) aceitar o desafio de modernizar o SNS ou (2) assumir abertamente perante os portugueses uma alternativa explícita ao SNS.

Na medida em que estas alternativas não forem claramente assumidas perante os cidadãos, estes não podem verdadeiramente escolher em consciência – e este é um dos problemas que enfrentamos nas eleições do próximo dia 27 de Setembro.
E, no entanto, essas alternativas, que, por uma ou outra razão, não se expõem abertamente, podem facilmente descodificar-se da análise dos programas expostos:
- Cuidados de saúde vistos como um bem como outro qualquer, num mercado como outro qualquer, em que o Estado se assume essencialmente como entidade financiadora, passando  consequentemente, os serviços públicos na Saúde ter um papel progressivamente residual;
- A Saúde, abordada nas suas múltiplas dimensões, centrada num SNS descentralizado e próximo das necessidades e escolhas das pessoas, complementado e cooperando com um sector social e privado dinâmico e moderno.

 

3. A alternativa que se configura para o SNS está de facto centrada na “velha - nova” promessa dum sistema de saúde em que “o Estado paga para cada um ir aos serviços de saúde que quiser”.
Esta é à primeira vista uma promessa aliciante. Desde 1979 ela é periodicamente apresentada, sob diversas designações e diversos graus de explicitação, como uma alternativa ao SNS. Sendo um solução aparentemente tão simples e atraente porque não se adopta efectivamente?
Extensas análises da experiência internacional neste domínio respondem a esta questão:
Primeiro - Em cuidados de saúde a oferta cresce e elabora-se constantemente e a procura pode ser induzida facilmente – os serviços prestadores, buscando livremente mais-valias nos orçamentos da saúde, podem beneficiar facilmente destas circunstâncias, criando uma pressão insustentável sobre o financiamento público.
Segundo – a solução para esta pressão é bem conhecida: reduzir a “cobertura financeira pública” (pagar o mesmo por menos), estimulando o gasto privado quer directamente, quer através de seguros privados de saúde, acentuando o desfavorecimento dos mais desfavorecidos.
Terceiro – O SNS é o principal instrumento regulador do conjunto do sistema de saúde: está em todo o país, a todas as horas, para todas as pessoas, dando cobertura aos nichos de cuidados que não são atraentes para o sector privado, padecendo da inevitável obrigação de responder a todo o momento, política, legal e mediaticamente, face às suas responsabilidades públicas (o que, feitas as contas simplisticamente, ignorando estes aspectos sistémicos fundamentais, pode torná-lo aparentemente menos eficiente nalgumas prestações quando comparado com que algum sector privado ou social);
Quarto – Quando este poder regulador e protector deixar de existir, a relação entre o financiamento público e a prestação privada – esse mercado da Saúde – não será aquela que é hoje. Uma antecipação do que ela poderá ser é-nos já hoje proporcionada, por exemplo, pela dificuldades em regular no sentido da não descriminação dos doentes com financiamento público (ADSE) por algum sector privado; 
Quinto – E assim chegaremos rapidamente a uma situação de onde outros querem sair e não conseguem: a coexistência de um serviço público de saúde, residual em qualidade e extensão, para os mais desfavorecidos, a par de um sistema paralelo de seguros privados para aqueles que os podem pagar. Atrasos, incapacidades ou puramente desinteresse pela modernização do SNS, já nos permitiram perceber esse caminho – As extraordinárias resistências que uma reforma da Saúde experimenta actualmente nos EUA, ilustram bem a ideia de que, indo por esse caminho, não há regresso fácil. As reacções de interesses socialmente ilegítimos, abusivamente entrincheirados neste tipo de mercado da saúde são de tal forma violentas, que pela primeira vez na história dos Estados Unidos, um presidente, com um programa cuidadosamente centrista, é insultado por um congressista conservador quando se dirige ao Congresso dos EUA, exortando-o a por fim a um sistema tão iníquo que deixa sem qualquer cobertura financeira, que permita o acesso a cuidados de saúde minimamente decentes, 45 milhões dos cidadão do país mais desenvolvido do planeta. Este é um futuro que não queremos.

 

4. Promover o “estado social” numa sociedade genuinamente pluralista, em que as escolhas informadas são possíveis, em vez de idealizar um “mundo de conveniência” que puramente não existe.
Sabemos que vivemos ainda num país, em termos de “governança” (a forma como funcionam os poderes reais em contraponto com os formais), muito “estruturado” e pouco pluralista, onde é patente a influência real de grupos sociais interrelacionados, com acesso privilegiado a recursos críticos e que, articulando-se e potenciando-se mutuamente em múltiplas plataformas – sociais, económicas, associativas, financeiras e políticas – se sobrepõem facilmente aos frágeis instrumentos destinados a regular as políticas públicas mais diversas, como é patente em sectores bem menos complexos que o da Saúde.
Isto faz com que os dogmas sobre “reguladores” realmente inexistentes (ou pelo menos muito menos eficazes do que teoricamente se supõe) e o pressuposto da igualdade de oportunidades constituam actualmente uma grosseira falsa partida para políticas de saúde efectivas.
Poder escolher é indiscutivelmente um valor nas sociedades contemporâneas – e a escolha liberta sempre que ela possa ter lugar em circunstâncias em que as suas consequências a curto e a longo prazo sejam conhecidas por quem escolhe. Pelo contrário, quando a “escolha”  é forçada num contexto gerido de forma a assegurar antes o benefício do escolhido, ao invés do daquele que  “escolhe”, a “escolha” não liberta, antes aprisiona na malha de interesses alheios. O SNS e os seus parceiros oferecem de facto mais escolhas do que aquelas que realmente se exercem. E isso pode ainda ser substancialmente melhorado.
Pressupor que “jogando o mesmo jogo com capacidades e oportunidades dramaticamente diferentes todos seremos igualmente beneficiados”, alimenta e promove ilusões socialmente arriscadas para a maior parte dos portugueses.
É dessas ilusões que um SNS está destinado a proteger-nos – e se ele ainda não o faz suficientemente bem, então há que investir seriamente na sua reforma e modernização. Para isso, em Portugal, necessitamos simultaneamente de um estado social adequado aos nossos dias e de uma sociedade genuinamente mais pluralista, onde escolhas bem informadas possam efectivamente ter lugar.
Os portugueses pressentem, para além da subtileza dos argumentos técnicos e das campanhas políticas, que o SNS, com todos a seus sucessos e limitações, é uma realização e uma património, político, social, económico e cultural do país, no qual foram investindo, no decurso dos últimos 30 anos, visando o seu progressivo desenvolvimento. É natural que não pareçam disponíveis para abrir mão desta realidade a troco de promessas, eivadas de preconceitos ideológicos, certamente muito artificiais, quando perspectivados nos contextos culturais e históricos que influenciaram as políticas de saúde no passado. Esta talvez seja a principal razão porque mesmo quando se omite qualquer menção ao SNS, não se propõe explicitamente a sua subalternização ou substituição por um modelo alternativo.
 

5. Continuar a modernizar o SNS, articulando-o com um sector social e privado inovador, estabelecendo parcerias de interesse mútuo – O SNS precisa de identificar mais claramente os seus parceiros estratégicos.
A modernização absolutamente necessária do SNS – em que aparentemente nem todos estão interessados – requer visão, liderança e coragem política, mas também imaginação, inovação e capacidade para mobilizar o potencial científico e tecnológico das universidades e das empresas, das autarquias locais e das organizações não governamentais, e do conjunto da sociedade portuguesa.
Requer também capacitar melhor o cidadão, promovendo a sua literacia em saúde, em todos os seus aspectos. 
E isto ainda não conseguimos fazer suficientemente bem.
A genuína reforma dos centros de saúde em curso é um excelente começo – porque está a ser capaz de descentralizar responsabilizando, de mobilizar os profissionais de saúde para um trabalho de qualidade, ensaiando formas de remuneração associadas ao desempenho - porque satisfaz comprovadamente as pessoas que a eles recorrem.
As novas unidades de saúde familiar são um novo modelo de serviço público de saúde, uma marca de qualidade para o SNS, reconhecida por todos independentemente da sua condição social. É necessário prosseguir, promover estes mesmos princípios nos cuidados hospitalares, continuar o desenvolvimento da rede de cuidados continuados com a importantíssima colaboração do sector social, consolidar e prosseguir os progressos conseguidos no domínio da saúde pública.  
O SNS precisa de se articular de uma forma mais eficaz e transparente com o que há de mais dinâmico e inovador no sector privado e social –  precisa de identificar com mais clareza os seus parceiros estratégicos. 
Aqui há que ensaiar formas de cooperação que beneficiem comprovadamente todas as partes. Existe hoje nas empresas portuguesas capacidade de produzir novos medicamentos, de inovar em sistemas de informação e comunicação, de promover uma indústria do “bem-estar”. Existem competências no sector privado da saúde que podem potenciar e ser potenciadas por capacidades complementares no sector público.
Mas esta cooperação, indispensável, necessita de um clima de confiança.
Não se pode pretender estabelecer parcerias com o SNS e ao mesmo tempo promover acções inseridas em agendas que visam a sua degradação e desaparecimento.  
O SNS do futuro, mais ainda que o do passado, será um instrumento de inclusão e solidariedade na sociedade portuguesa, mas também um importante factor de inovação e desenvolvimento económico e social do país. 

 

SUBSCRITORES

Adalberto Campos Fernandes
Álvaro Beleza
Bernardo Vilas-Boas
Constantino Sakellarides
Henrique de Barros
Isabel Monteiro Grillo
Vítor Ramos

 


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