Transformação e revolução
Neste post, o Miguel Morgado transforma as diferentes esquerdas numa super-entidade chamada A Esquerda, e confunde vontade de transformação política com uma espécie de plano quinquenal revolucionário. Para além da aglutinação pouco rigorosa das diferentes esquerdas, a crítica do Miguel é, sobretudo, uma apologia acrítica do conservadorismo — ou daquele liberalismo que reduz toda e qualquer intervenção do estado a um proto-totalitarismo.
O Miguel recorre a um velho truque da direita: tenta encostar a esquerda reformista à esquerda revolucionária. Segundo esta narrativa, a transformação social não é mais do que uma versão soft e reciclada das velhas utopias da esquerda revolucionária. Ou seja, a esquerda é toda igual: jacobina e perigosa. Mas a crítica a uma visão estritamente revolucionária e voluntarista da política também tem uma enorme tradição de esquerda. A esquerda social democrata, por exemplo, sempre defendeu o reformismo gradual, sem necessidade de abandonar um horizonte utópico. Basta recordar a posição alguém como Habermas, que é fortemente progressista e rejeita categoricamente o conservadorismo que o Miguel implicitamente propõe.
O problema é que o Miguel parte de uma falsa dicotomia. O discussão relevante não é aquela que se limita a discutir abstracções formais como "transformar" vs. "conservar" ou "estado" vs. "sociedade civil". Se aceitássemos esta posição dicotómica, não saberíamos como distinguir entre investir numa vacina para curar a pólio e arregimentar a classe operária para implementar o comunismo, nem entre conceder subsídios para investir em energia e nacionalizar todo o aparelho produtivo, nem entre investir em educação e abolir a família burguesa. A questão que divide a esquerda reformista e a direita não pode ser aquela que o Miguel pretende, pois toda a política — e a de direita não é excepção — comporta necessariamente uma dimensão instrumental: algo tem de ser feito. Ou seja, não há acção política sem transformação social.
Contrariamente à sugestão do Miguel, aquilo que se opõe a uma visão tecnológica e burocrática do poder não é um certo tipo de conservadorismo; é a democracia. (cont.)